Cambas e collas: é possível um viver bem sem o outro?

 Roberto Villar Belmonte*

“Existem cinquenta tons de verde”, constatou a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira na abertura do V Congresso Brasileiro de Jornalismo Ambiental, realizado em outubro de 2013 em Brasília (DF), em referência bem humorada ao best seller “Cinquenta tons de cinza” da escritora inglesa Erika Leonard. Talvez eu já tenha encontrado bem mais do que cinquenta tons de verde desde 1991, quando comecei, como jornalista profissional, a acompanhar os debates que envolvem o meio ambiente. O que aparentemente seria uma boa coisa, pois, em tese, quanto mais pontos de vista melhor. O problema é que, na prática, os tons de verde, por mais incrível que possa parecer, costumam não apenas destoar entre si, mas também buscam sempre que podem ofuscar uns aos outros. As divergências viram regra, as convergências exceção. Não raro os mais de cinquenta tons de verde cristalizam-se em torno de apenas duas pobres tonalidades, ranzinzas, sectárias, geralmente intolerantes.

Este sectarismo, que no Rio Grande do Sul é conhecido como “grenalização” da sociedade, em referência à rivalidade futebolística entre Grêmio e Internacional, na Bolívia é ainda mais marcante. Historicamente o país se divide entre cambas e collas (se pronuncia coias ou colhas). Não se trata apenas de uma distinção geográfica entre nascidos em Santa Cruz de la Sierra, onde predomina a agricultura empresarial, o petróleo e o gás natural, e os nascidos no altiplano, onde estão as plantações de coca, a agricultura de subsistência e a mineração. É mais. Em Santa Cruz de la Sierra é triste ver o modo discriminatório como se referem aos collas, aimaras e quíchuas, descendentes do império Inca, entre eles o presidente Evo Morales. Na verdade, os “ricos” do oriente boliviano não aceitam um índio há oito anos no poder.

Estive duas vezes na Bolívia. A primeira delas no segundo mês do mandato de Evo Morales. Na época entrevistei em La Paz (a capital política), para a revista de uma fábrica de tratores do Brasil, o ex-guerrilheiro Felipe Quispe Huanca, secretário-executivo da Confederação Sindical Única de Trabalhadores Campesinos da Bolívia, que defendia a modernização das propriedades do altiplano com máquinas agrícolas. Quispe, que disputou a presidência com Evo (eram diferentes os tons de verde), na eleição do dia 18 de dezembro de 2005, e fez apenas 2,2% dos votos, é conhecido como El Mallku, que significa “o príncipe” na língua dos índios aymara, a mesma etnia do presidente Morales.

Juan Evo Morales Ayma, do Movimento al Socialismo (MAS), foi eleito no primeiro turno com o apoio de 53,7% dos eleitores. El Mallku, apesar do fracasso na eleição, por falta de dinheiro para fazer campanha, como me explicou na época, tem história na política boliviana. Ele foi um dos comandantes do Exército Guerrilheiro Tupac Katari, movimento armado que também tinha em seus quadros o atual vice-presidente, Álvaro Marcelo García Linera. Na entrevista que me concedeu, nas margens do lago Titicaca, o ex-guerrilheiro me falou da herança cultural dos incas, do espírito comunitário dos campesinos, em contraponto ao individualismo ocidental (crítica aos cambas), da visão mística da natureza, do respeito e da devoção que eles (collas) têm em relação à água, às plantas e à “pachamama”, a Mãe Terra. Uma aula de ambientalismo, me pareceu.

A segunda vez que estive na Bolívia foi recentemente, em fevereiro de 2014, novamente para realizar uma reportagem para a revista de uma fábrica de máquinas agrícolas do Brasil. Desta vez cobri uma entrega de tratores e colheitadeiras feita pelo próprio Evo Morales. Em Santa Cruz de la Sierra, quartel-general da resistência ao seu governo. Era visível o descontentamento camba com o índio cocalero colla que preside o país. Ouvindo ele discursar sobre a importância dos novos equipamentos para os pequenos e médios agricultores da região oriental, pensava na Constituição Política do Estado Plurinacional da Bolívia, aprovada por 2/3 do Congresso Nacional em outubro de 2008. É um documento famoso no mundo (dos que pensam à esquerda) principalmente pelo seu artigo oitavo onde está escrito que o Estado assume e promove como princípios ético-morais da sociedade plural o viver bem, a vida harmoniosa, a vida boa, a terra sem mal e o caminho ou a vida nobre. A Bolívia vive um momento histórico. Em construção. Repleto de conflitos. Ainda muito marcado por intolerâncias. De ambos os lados.

Os originários contemporâneos, conhecidos como cambas, e os originários milenares, chamados de collas, têm tanto a aprender uns com os outros. Tomara que consigam. E nós? Será que um dia vamos de fato conseguir nos dar conta que o nosso viver bem, como afirma o princípio ético consagrado na nova constituição boliviana, depende do viver bem do outro? Vamos dialogar com os mais de cinquenta tons de verde ou continuaremos dividindo o mundo em a favor e contra? Preto e branco? Do bem e do mal? Cambas e collas?

*Narrativa que publiquei no livro Lia mas não escrevia (2014), organizado por Luis Felipe Machado do Nascimento.

Deixe um comentário